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Category Archives: Jorge Luis Borges

O conto inicia-se com uma referência (real) a uma situação de guerra, relacionada com o adiamento de uma ofensiva britânica durante a Primeira Guerra Mundial. No entanto, uma declaração assinada pelo Dr. Yu Tsun parece apresentar uma explicação diferente para o já referido adiamento. A partir deste ponto, é a voz de Tsun que nos guia através da narrativa.

Yu Tsun apercebe-se através de um telefonema que a sua vida está condenada, ao reconhecer a voz do capitão Richard Madden, pois Yu Tsun é um agente ao serviço do Império Alemão. Após um momento de divagação – em que reflecte “que todas as coisas nos acontecem, acontecem precisamente agora. Séculos e séculos, e só no presente ocorrem os factos;…”. Reflexão que, como se irá entender mais tarde, é relevante para o tema central do conto – decide agir para transmitir o que sabe: a localização da artilharia britânica, e para isso tem de fugir. Ao analisar o conteúdo dos seus bolsos e constatar os seus parcos recursos (à excepção de um revólver com uma única bala, elabora rapidamente o seu plano, e procura na lista telefónica a morada da única pessoa capaz de o ajudar a transmitir a sua mensagem.

Falando no presente (o relato até aqui é o das suas acções num passado próximo), recorda o que o levou a pôr em práctica as suas acções: “…porque sentia que o Chefe temia um pouco os da minha raça — os inumeráveis antepassados que em mim confluem. Queria provar-lhe que um amarelo podia salvar os seus exércitos.”

Volta ao relato e descreve como sai da sua casa, apanha um táxi e dirige-se à estação, onde compra uma passagem para um destino mais distante do seu. Apanha rapidamente o comboio, e quando este começa em andamento, distingue na plataforma o seu perseguidor: capitão Richard Madden.

Discorre para si próprio acerca da sua vitória e do sucesso do seu plano. E elabora um conselho: “O executor de uma empresa atroz deve imaginar que já a cumpriu, deve impor-se um futuro que seja irrevogável como o passado” – mais uma afirmação que será relevante no entendimento dos acontecimentos futuros.

Sai do comboio na estação de Ashgrove, a localidade que procura e pela qual inquire uns meninos na plataforma. Um deles responde que se seguir sempre para a esquerda, chegará ao local que pretende: a casa do Dr. Stephen Albert.

O conselho da criança de virar sempre à esquerda lembra a Yu Tsun que este era o processo habitual para chegar ao centro de alguns labirintos. E aqui recorda um seu antepassado, Ts’ui Pen, que foi governador de uma província na sua terra natal e que renunciou a tudo para escrever um romance e construir um “labirinto em que todos os homens se perdessem”. Após ter dedicado treze anos a estas empresas, foi assassinado por um forasteiro, e o que restou foram fragmentos de um romance que não faziam qualquer sentido e um labirinto nunca encontrado. Yu Tsun divaga acerca desta memória e imagina diversas formas para o labirinto: “Pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso labirinto crescente que abarcasse o passado e o futuro e que envolvesse, de qualquer modo, os astros.” E esta reflexão revelar-se-á premonitória.

Encontra então a casa que procura, de onde sai um homem com uma lanterna ao seu encontro, que não parece de todo surpreendido, e que o convida a ver “O jardim dos caminhos que se bifurcam”, ao que Yu Tsun responde com a segurança da súbita lembrança: “O jardim do meu antepassado Ts’ui Pen”. O homem da casa fica contente pela descoberta e convida-o a entrar.

É conduzido a uma biblioteca onde se encontram vários livros e objectos orientais, entre os quais Yu Tsun reconhece um jarrão de família. O seu anfitrião, Stephen Albert, relata-lhe então as suas descobertas acerca do seu antepassado, os seus escritos e o famoso labirinto. Descreve os feitos, a erudição e o legado de Ts’ui Pen, e por fim indica a localização do labirinto, indicando uma escrivaninha alta; ao olhar, Yu Tsun exclama: “Um labirinto de marfim!…”, “Um labirinto mínimo…”. Esta referência não é muito clara, nem volta a ser mencionada no desenrolar da narrativa. Stephen Albert contrapõe: “Um labirinto de símbolos.”, “Um invisível labirinto de tempo.”. E explica que todos sempre imaginaram que o labirinto e o livro seriam obras distintas, nunca ocorreu a ninguém que pudessem ser um único objecto; como ele próprio, examinando todas as circunstâncias, chegou a essa mesma conclusão com ênfase em dois factores: a lenda de que o propósito de Ts’ui Pen tinha sido construir um labirinto que fosse “estritamente infinito” e um fragmento de uma carta onde Yu Tsun lê com “incompreensão e fervor”: “Deixo aos vários futuros (não a todos) o meu jardim dos caminhos que se bifurcam“.

Stephen continua descrevendo as suas conjecturas e como chegou à conclusão de que não poderia ser de outra forma senão a de um livro circular, “um volume cuja última página fosse idêntica à primeira, com possibilidade de continuar indefinidamente.”,  e fazendo uma referência às “1001 Noites” onde ocorre um processo semelhante a determinada altura, correndo o risco de a história se repetir até ao infinito. Conclui que foi a frase da carta que o levou à ideia da “bifurcação no tempo, não no espaço.” e que uma outra leitura da obra confirmou as suas suspeitas. Assim, na obra de Ts’ui Pen, o leitor não opta por uma alternativa, mas sim por todas, criando diversos futuros e tempos, que por sua vez se multiplicam e dividem. É por esta razão que o romance contém tantas aparentes contradições.

Enquanto Stephen Albert continua sua dissertação, Yu Tsun observa o seu anfitrião e escuta as suas palavras, pensando no seu antepassado e em como é um homem tão distante de si que lhe restitui a sua história. Ao ouvir Stephen pronunciar as palavras finais que são repetidas no final de todos os excertos (“Assim combateram os heróis, tranquilo o admirável coração, violenta a espada, resignados a matar e a morrer.“), começa a ter a estranha sensação de ” uma invisível, intangível pululação.”

Stephen Albert começa então a explicar a sua crença de que Ts’ui Pen, pela sua personalidade e convenções da sua época, não se limitou a perder tempo numa empresa meramente exploratória, já que era um homem de profundas crenças místicas e metafísicas, e que uma das suas maiores preocupações era a questão do Tempo. O curioso, continua Stephen, é que essa é exactamente a única palavra que nunca surge no texto; como numa charada, onde a única palavra que não pode surgir é aquela que dá resposta à mesma. Ou seja, “O jardim de caminhos que se bifurcam” é, segundo Stephen Albert, “…uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o tempo;…”, em conclusão, é a expressão da forma como Ts’ui Pen concebia o universo, incompleta mas não falsa: este acreditava em diversos níveis de tempos, infinitos, “…divergentes, convergentes e paralelos.”, que abarcam todas as possibilidades. É para esta fase do texto que todas as referências e afirmações anteriores convergem, sugando agora a uma nova luz.

Yu Tsun agradece a Stephen Albert, em todos os tempos, a sua recriação do trabalho do seu antepassado, ao que Stephen responde que não em todos, em algum ele é seu inimigo. Mais uma vez Ts’ui Pen sente a anterior pululação, desta vez com a sensação de que o jardim no exterior está pejado de pessoas invisíveis, ele e Albert em várias outras dimensões temporais.

Ao olhar mais atentamente, vê a avançar na sua direcção o capitão Richard Madden, e responde a Albert que “… O futuro já existe…” e pede-lhe para ler novamente a carta do seu antepassado. Quando Albert se vira, Ts’ui Pen mata-o com o revólver que trouxera.

É então preso por Madden, e posteriormente condenado à forca. Mas no entanto, ainda que abominando o facto, Ts’ui Pen venceu, pois conseguiu comunicar a Berlim (através da notícia que saíra nos jornais acerca do assassinato de Albert) qual a cidade que deveriam atacar: Albert, o nome do homem que matou. Tinha a certeza que o Chefe decifraria o enigma, sabendo este da dificuldade que Ts’ui Pen teria de comunicar esta informação.

Ts’ui Pen conclui então, fechando a sua declaração: “…não achei outro meio a não ser matar uma pessoa com esse nome. Não sabe – o Chefe – (ninguém pode saber) a minha imensa contrição e cansaço.”

 

(a Victoria Ocampo)

Na pagina 22 da Historia da Guerra Européia, de Liddell Hart, lê-se que uma ofensiva de treze divisões britânicas (apoiadas por mil e quatrocentas peças de artilharia) contra a linha de Serre-Moutauban tinha sido planejada para o dia vinte e quatro de julho de 1916 e teve que ser adiada até a manhã do dia vinte e nove. As chuvas torrenciais (anota o Cap. Liddell Hart) provocaram essa delonga – nada significativo, por certo. A seguinte declaração, ditada, relida e assinada pelo Dr. Yu Tusun, antigo catedrático de inglês na Hochschule de Tsingatao, projeta uma insuspeitada luz sobre o caso. Faltam as duas páginas iniciais.

“… e pendurei o fone. Imediatamente após, reconheci a voz que havia respondido em alemão. Era a do Cap. Richard Madden. Madden no apartamento de Viktor Runeberg, significava o fim de nossos afãs e – mas isso parecia muito secundário, ou devia parecer-me – também de nossas vidas. Queria dizer que Runenberg tinha sido detido, ou assassinado?* Antes que o sol desse dia declinasse, eu sofreria a mesma sorte. Madden era implacável . Ou melhor, estava obrigado a ser implacável. Irlandês às ordens da Inglaterra, homem acusado de tibieza e talvez de traição, como não abraçar e agradecer esse milagroso favor: a descoberta, a captura, quem sabe a morte, de dois agentes do Império Alemão? Subi ao meu quarto; absurdamente fechei a porta a chave e atirei-me de costas na estreita cama de ferro. Na janela mostravam-se os telhados de sempre e o sol nublado das seis. Pareceu-me incrível que esse dia sem premonições ou símbolos fosse o de minha morte implacável. Apesar de meu pai haver morrido, apesar de ter sido um menino num simétrico jardim de Hai Feng, eu, agora, ia morrer? Depois refleti que todas as coisas nos acontecem precisamente, precisamente agora. Século de século e apenas no presente ocorrem os fatos; inumeráveis homens no ar, na terra e mar, e tudo o que realmente sucede; sucede a mim… A quase intolerável lembrança do rosto acavalado de Madden aboliu essas divagações. Em meio ao meu ódio e meu terror (no momento não me importa falar de terror: agora que enganei Richard Madden, agora que minha garganta anseia pela corda) pensei que esse guerreiro tumultuoso e sem dúvida feliz não suspeitava que eu possuísse o Segredo.  O nome do exato  lugar do novo parque britânico e artilharia sobre o Ancre. Um pássaro riscou o céu cinza e cegamente tomei-o por um aeroplano e a esse aeroplano por muitos (no céu francês) aniquilando o parque de artilharia com bombas verticais. Se minha boca; antes que a desfizesse um balanço, pudesse gritar esse nome de modo que o escutassem na Alemanha… Minha voz era muito fraca. Como fazê-la chegar ao ouvido do Chefe? Ao  ouvido daquele homem doente e odioso, que nada sabia de Runeberg e de mim a não ser que estávamos em Staffordshire e inutilmente esperava noticias nossas em seu árido escritório de Berlim, examinando infinitamente jornais… Disse em voz alta: Devo fugir. Incorporei-me sem barulho, numa oca perfeição de silencio, como se Madden já estivesse espreitando. Algo – talvez a mera ostentação de provar que meus recursos eram nulos – fez me revistar meus bolsos. Encontrei o que sabia que ia encontrar. O relógio norte-americano, a corrente de níquel e a moeda quadrangular, o chaveiro com as comprometedoras chaves inúteis do apartamento de Runeberg, a caderneta, uma carta que resolvi destruir imediatamente (e que não destruí), uma coroa, dois xelins e uns pennies, o lápis vermelho-azul, o lenço, o revólver com uma bala. Absurdamente o empunhei e sopesei para dar-me coragem. Pensei vagamente que um tiro de pistola pode ser ouvido bem longe. Em dez minutos meu plano estava maduro. O guia telefônico forneceu-me o nome da única pessoa capaz de transmitir a noticia: vivia num subúrbio de Fenton, a menos de meia hora de trem.

Sou um homem covarde. Agora o digo, agora que levei a termo um plano que ninguém deixará de qualificar de arriscado. Sei que foi terrível sua execução. Não o fiz pela Alemanha, não. Pouco me importa um país bárbaro, que me obrigou à abjeção de ser um espião.  Ademais, eu sei de um homem da Inglaterra – homem modesto – que para mim não representa menos que Goethe. Não falei com ele mais de uma hora, mas durante uma hora foi Goethe… Eu fiz isso, porque sentia que o Chefe temia um pouco aos de minha raça – aos inumeráveis antepassados que em mim confluem. Eu queria provar-lhe que um amarelo podia salvar exércitos. De resto, devia fugir do capitão. Suas mãos e sua voz podiam bater-me à porta a qualquer momento. Vesti-me sem ruído, disse-me adeus no espelho, desci, esquadrinhei a rua tranqüila  e sai. A estação não ficava longe de casa, mas achei preferível tomar um carro. Argüi que assim corria menos perigo de ser reconhecido; o fato é que na rua deserta eu me sentia visível e vulnerável, infinitamente. Lembro-me de ter dito ao chofer que se detivesse um pouco antes da entrada central. Desci com lentidão voluntária e quase penosa; ia à aldeia de Ashgrove, mas retirei uma passagem para uma estação mais longe. O trem saia dentro de pouquíssimo minutos, às oito e cinqüenta. Apressei-me; o próximo partia às nove e meia. Não havia quase ninguém na plataforma. Percorri os vagões: recordo uns lavradores, uma mulher de luto, um jovem que lia fervoroso os Anais de Tácito, um soldado ferido e feliz. Os vagões, por fim, arrancaram. Um homem que reconheci correu em vão ate o limite da plataforma. Era o Cap Richard Madden. Aniquiliado, trêmulo, , encolhi-me noutra ponta do assento, longe da temida janela.

Dessa aniquilação passei a uma felicidade quase abjeta. Disse-me que já estava empenhada minha luta e que ganhara o primeiro assalto, ao iludir, ainda que por quarenta minutos, ainda que por favor da sorte, o ataque de meu adversário. Argui que essa vitória mínima prefigurava a vitória total. Arqui que não era mínima, já que sem essa diferença preciosa que o horário dos trens me oferecia, eu estaria no cárcere ou morto.  Argui ( não menos sofisticadamente) que minha felicidade covarde provava que eu era homem capaz de levar a bom termo a aventura. Dessa fraqueza tirei forças que não me abandonaram. Prevejo que o homem se resignará diariamente a empresas mais atrozes; breve só haverá guerreiros e bandoleiros, dou-lhes este conselho: O executor de uma empresa atroz deve imaginar que já a cumpriu, deve impor-se um futuro que seja irrevogável com o passado.  Assim procedi, enquanto meus olhos de homem já morto registravam o fluir daquele dia que era talvez o último, e a difusão da noite. O trem corria como doçura, entre freixos. Deteve-se, quase ao meio do campo. Ninguém gritou  o nome da estação. Ashgrove? – perguntei a uns meninos na plataforma. Ashgrove, responderam. Desci.

Uma lâmpada aclarava a plataforma, mas o rostos dos meninos ficavam na zona da sombra. Um me perguntou: O senhor vai à casa do Dr. Stephen Albert? Sem aguardar resposta, outro disse: A casa fica longe daqui, mas o senhor não se perderá se tomar esse caminho à esquerda e se em cada encruzilhada do caminho dobrar à esquerda.  Atirei-lhes uma moeda (a última), desci uns degraus de pedra e entrei no solitário caminho. Este, lentamente, descia. Era de terra elementar, confundiam-se no alto os ramos, a lua baixa e circular parecia acompanhar-me.

Por um instante, pensei que Richard Madden havia de algum modo penetrado  em minhas desesperadas intenções. Logo compreendi que isso era impossível. O conselho de sempre dobrar à esquerda lembrou-se que tal era o procedimento comum para descobrir o pátio central de certos labirintos. Entendo alguma coisa de labirintos: não é em vão que sou bisneto daquele Ts’ui Pen, que foi governador de Yunnan e que renunciou ao poder temporal para escrever um romance que fosse ainda mais populoso que o Hung Lu Meng e para edificar um labirinto em que todos os homens se perdessem. Treze anos dedicou a esses heterogêneos  trabalhos, porém a mão de um forasteiro o assassinou e seu romance era insensato e ninguém encontrou o labirinto. Sob árvores inglesas meditei nesse labirinto perdido: imaginei-o inviolado e perfeito no cume secreto de uma montanha, imaginei-o disfarçado por arrozais ou debaixo d’água, imaginei-o infinito, não já de quiosques oitavados e de caminhos que voltam, mas sim de rios e províncias e reinos… Pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso labirinto crescente que abarcasse o passado e o futuro e que envolvesse, de algum modo, os astros. Absorto nessas imagens ilusórias, esqueci meu destino de perseguido. Senti-me, por um tempo indeterminado, conhecedor abstrato do mundo. O vago e vivo campo, a lua, os restos da tarde, agiram sobre mim; também o declive que eliminava qualquer possibilidade de cansaço. A tarde era íntima, infinita. O caminho descia e se bifurcava, entre várzeas indistintas. Uma música aguda e como que silábica aproximava-se e afastava-se no vaivém do vento, turvada de folhas e de distância. Pensei que um homem pode ser inimigo de outros homens, de outros momentos de outros homens, mas não de um país: não de vaga-lumes, palavras, jardins, cursos de água, poentes. Cheguei, assim, a um alto portão enferrujado. Entre as grades de ferro decifrei uma alameda e uma espécie de pavilhão. Compreendi, logo. duas coisas, a primeira trivial, a segunda quase incrível: a música vinda do pavilhão, a música era chinesa. Por isso eu a aceitara com plenitude, sem prestar-lhe atenção. Não recordo se havia uma sineta ou uma campanhia ou se chamei batendo palmas. A contínua vibração da música prosseguiu.

Mas do fundo da aconchegante casa uma lanterna se aproximava: uma lanterna que os troncos riscavam e por instantes anulavam, uma lanterna de papel, que tinha  a forma dos tambores e a cor da lua. Um homem alto a trazia. Não vi seu rosto, porque a luz me cegava. Abriu o portão e disse lentamente no meu idioma:

_ Vejo que o piedoso Hsi P’eng se empenha em corrigir minha solidão. O senhor sem dúvida desejará ver o jardim?

Reconheci o nome de um de nossos cônsules e repeti desconcertado:

_ O jardim?

_ O jardim de caminhos que se bifurcam.

Alguma coisa se agitou em minha lembrança e pronunciei com incompreensível segurança:

_ O jardim de meu antepassado Ts’uui Pen.

_ Seu antepassado? Seu ilustre antepassado? Avante.

O úmido caminho ziguezagueava como os de minha infância. Chegamos a uma biblioteca de livros orientais e ocidentais. Reconheci, encadernados em seda amarela, alguns volumes manuscritos da Enciclopédia Perdida que o Terceiro Imperador da Dinastia Luminosa orientou e que nunca foi publicada. O disco do gramofone girava junto a um fênix de bronze. Lembro-me também de um jarrão rosa da família e outro, anterior de muitos séculos, dessa cor azul que nossos artífices copiaram dos oleiros da Pérsia…

Stephen Albert observava-me, sorridente. Era (já o disse) muito alto, de feições afiladas, de olhos cinzentos e barba cinzenta. algo de sacerdote havia nele e também de marítimo; depois me referiu que fora missionário em Tientsin ‘antes de aspirar a sinólogo’.

Sentamo-nos; eu num comprido e baixo divã; ele de costas à janela e a um alto relógio circular. Calculei que meu perseguidor Richard Madden, antes de uma hora não chegaria. minha determinação irrevogável podia esperar.

_Assombroso destino o de Ts’ui Pen – disse Stephen albert. – Governador de sua província natal, douto em astronomia, em astrologia e na interpretação infatigável dos livros canônicos, enxadrista, famoso poeta e calígrafo: abandonou tudo para compor um livro e um labirinto. Renunciou aos prazeres da opressão, da justiça, do numeroso leito, dos banquetes e ainda da erudição e enclausurou-se durante treze anos no Pavilhão Límpida Solidão. Ao morrer, os herdeiros só encontraram manuscritos caóticos. A família, como talvez o senhor não ignore, quis adjudicá-los ao fogo; mas seu testamenteiro – um monge taoísta ou budista – insistiu na publicação.

_ Os do sangue de Ts’sui Pen – respondi – continuamos execrando a esse monge. Essa publicação foi insensata. O livro é um acervo indeciso de apontamentos contraditórios. Examinei-o certa vez: no terceiro capítulo morre o herói, no quarto está vivo. Quanto à outra empresa de Ts’ui Pen, ao seu Labirinto…

_ Aqui está o Labirinto – disse indicando-me uma alta escrivaninha laqueada.

_ Um labirinto de marfim! – exclamei. – Um labirinto mínimo…

_ Um labirinto de símbolos – corrigiu. – Um invisível labirinto de tempo. A mim, bárbaro inglês, foi-me dado revelar esse diáfano mistério. Ao fim de mais de cem anos, os pormenores são irrecuperáveis, mas não é  difícil conjeturar o que sucedeu.  Ts’sui Pen teria dito uma vez: Retiro-me para escrever um livro. E outra: Retiro-me para construir um labirinto. Todos imaginaram duas obras; ninguém pensou que livro e labirinto eram um só objeto. O Pavilhão da Límpida Solidão erguia-se no centro de um jardim talvez intrincado; essa circunstância pode ter sugerido aos homens um labirinto físico. Ts’sui Pen morreu; ninguém, nas dilatadas terras que foram suas, achou o labirinto. Duas situações trouxeram-se a exata solução do problema. Uma: a curiosa lenda de que Ts’suiu Pen se propusera um labirinto que fosse estritamente infinito. Outra: um fragmento de uma carta que descobri.

Albert levantou-se. Volveu-me, por uns instantes, as costas; abriu a gaveta da áurea e enegrecida escrivaninha. Voltou com um papel antes carmesim; agora rosado e tênue e quadriculado. Era justo o renome caligráfico de Ts’sui Pen. Li com incompreensão e fervor estas palavras que com minucioso pincel redigira um homem de meu sangue: Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de caminhos que se bifurcam. Devolvi em silêncio a folha. Albert continuou:

_ Antes de exumar esta carta, eu tinha me perguntado de que maneira um livro pode ser infinito. Não conjeturei outro processo que o de um volume cíclico, circular. Um volume cuja última página fosse idêntica à primeira, com possibilidade de continuar indefinidamente. Recordei também aquela noite que está no centro das Mil e Uma Noites, quando a Rainha Scheherazade (por uma mágica distração do copista) põe-se a referi textualmente a história das ‘1001 Noites’, com risco de chegar outra vez à noite na qual está fazendo o relato, e assim até o infinito. Imaginei também uma obra platônica, hereditária, transmitida de pai para filho, na qual cada novo indivíduo aditasse um capítulo ou corrigisse com piedoso cuidado a página dos antepassados.  Essas conjeturas distraíram-me; mas nenhuma parecia corresponder, ainda que de um modo distante, aos contraditórios capítulos de Ts’sui Pen. Nessa perplexidade, remeteram-me de Oxford o manuscrito que o senhor examinou. Detive-me, como é natural, na frase: Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de caminhos que se bifurcam. Quase de imediato compreendi: o jardim de caminhos que se bifurcam era o romance caótico; a frase vários futuros (não a todos) sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. A releitura geral da obra confirmou essa teoria. Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’sui Pen, opta – simultaneamente – por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance, Fang, digamos, tem um segredo; um desconhecido chama à sua porta; Fang pode matar o intruso, o intruso pode matar Fang, ambos podem salvar-se, ambos podem morrer, etc. Na obra de Ts’sui Pen, todos os desfechos ocorrem; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações. Às vezes, os caminhos desse labirinto convergem: por exemplo, o senhor chega a esta casa, mas num dos passados possíveis o senhor é meu inimigo, em outro meu amigo. Se o senhor se resignar à minha pronúncia incurável, leremos algumas páginas.

Seu rosto, no vívido círculo da lâmpada, era sem dúvida o de um ancião, mas com algo inquebrável e ainda imortal. Leu com lenta precisão duas versões de um mesmo capítulo épico. Na primeira, um exército marcha para uma batalha através de uma montanha deserta; o horror das pedras e da sombra leva-o a menosprezar a vida e consegue facilmente a vitória; na segunda, o mesmo exército atravessa um palácio onde há uma festa; resplandecente batalha se lhe afigura uma continuação da festa e obtém a vitória.  Eu escutava com apropriada veneração essas velhas ficções, talvez menos admiráveis que o fato de terem sido ideadas pelo meu sangue e que um homem de um império remoto as restituísse a mim, no curso de uma desesperada aventura, numa ilha ocidental. Lembro-me das palavras finais, repetidas em cada versão como um mandamento secreto: Assim como combateram os heróis, tranqüilo o admirável coração, violenta a espada, resignados a matar e morrer.

A partir desse instante, senti ao meu redor e no meu pobre corpo uma invisível, intangível pululação. Não a pululação dos divergentes, paralelos e finalmente coalescentes exércitos, porém uma agitação mais inacessível, mais íntima e que eles de certo modo prefiguravam. Stephen Albert continuou:

_ Não acredito que seu ilustre antepassado brincasse ociosamente com as variações. Não julgo verossímil que sacrificasse treze anos à infinita execução de um experimento retórico. Em seu país, o romance é um gênero subalterno; naquele tempo era um gênero desprezível. Ts´sui Pen foi um romancista genial, mas também foi um homem de letras que sem dúvida não se considerou um simples romancista. O testemunho de seus contemporâneos proclama – e fartamente o confirma sua vida – suas inclinações metafísicas, místicas. A controvérsia filosófica usurpa boa parte do romance. Sei que de todos os problemas, nenhum o inquietou e ocupou como o abismal problema do tempo. Pois bem, esse é o único problema que não figura nas páginas do jardim. Nem sequer emprega a palavra que significa tempo. Como explica o senhor essa voluntária omissão?

Propus várias soluções: todas, insuficientes. Discutimo-las; por fim, Stephen Albert disse-me:

_ Numa charada cujo tema é o xadrez, qual seria a única palavra proibida? – Pensei um momento e repliquei:

_ A palavra xadrez.

_ Exatamente – falou Albert. _ O jardim de caminhos que se bifurcam é uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o tempo; essa causa recôndita proíbe-lhe a menção desse nome. Omitir sempre uma palavra, recorrer a metáforas ineptas e a perífrases evidentes, é quiçá o modo mais enfático de indicá-la. É o modo tortuoso que preferiu, em cada um dos meandros de seu infatigável romance, o oblíquo Ts´sui Pen. Confrontei centenas de manuscritos, corrigi erros que a negligência dos copistas introduziu, conjeturei o plano desse caos, restabeleci, acreditei restabelecer, a ordem primordial, traduzi a obra toda: consta-me que não usa uma só vez a palavra tempo. A explicação é óbvia: O jardim de caminhos que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts´sui Pen. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; nalguns existe o senhor e não eu. Noutros, eu, não o senhor; noutros, os dois. Neste, que um acaso favorável me surpreende, o senhor chegou a minha casa; noutro, o senhor ao atravessar o jardim, encontrou-me morto; noutro, digo estas mesmas palavras, mas sou um erro, um fantasma.

_ Em todos – articulei com um certo temor – agradeço e venero sua recriação do jardim de Ts´ui Pen.

_ Não em todos _ murmurou com um sorriso. _ O tempo se bifurca perpetuamente para inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo.

Voltei a sentir aquela pululação de que falei. Pareceu-me que o úmido jardim que rodeava a casa estava saturado até o infinito de pessoas invisíveis. Essas pessoas eram Albert e eu, secretos, atarefados e multiformes em outras dimensões de tempo. Alcei os olhos e o tênue pesadelo se dissipou. No amarelo e negro jardim havia um só homem; mas esse homem era forte como uma estátua, mas esse homem avançava pelo caminho e era o Cap. Richard Madden.

_ O futuro já existe – respondi _ mas eu sou seu amigo. Posso examinar de novo a carta?

Albert levantou-se. Alto, abriu a gávea da alta escrivaninha; deu-me por um momento as costas. Eu havia preparado o revólver. Disparei com o maior cuidado: Albert se desaprumou, sem uma queixa, imediatamente. Juro que sua morte foi instantânea: uma fulminação.

O resto é irreal, insignificante. Madden irrompeu, prendeu-me. Fui condenado à forca. Abominavelmente venci: comuniquei a Berlim o nome secreto da cidade que deviam atacar. Ontem a bombardearam; li a notícia nos mesmos jornais em que apresentaram à Inglaterra o enigma do sábio sinólogo Stephen Albert, que morrera assassinado por um desconhecido, Yu Tsun. O chefe decifrou esse enigma. Sabe que meu problema era indicar (através dos estrépito da guerra) a cidade que se chama Albert e que não achei outro meio a não ser matar uma pessoa com esse nome. Não sabe (ninguém pode saber) minha imensa contrição e cansaço.

* Hipótese odiosa e ridícula. O espião prussiano Hans Rabener, alias Viktor Runeberg,  agrediu com uma pistola automática o portador da ordem de preisão, Cap. Richard Madden. Este, em defesa própria, causou-lhe ferimentos que determinaram sua morte (Nota do Editor).

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Escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta.

A sua obra em torno ficção aborda temáticas como a metafísica, a semiótica, a matemática, a filosófia, a teologia e a mitologia, e oferece-nos conhecimentos eruditos e ideias universais em textos de uma originalidade incomparável, expressa em labirintos lógicos.

José Luis Borges nasceu em Buenos Aires a 24 de Agosto de 1899. Aprendeu a língua inglêsa e espanhola logo em criança por influência da sua avó de origem inglesa e desde cedo revela o seu gosto pela escrita ao escrever o seu primeiro conto La Visera Fatal, inspirado num episódio de Dom Quixote, com apenas nove anos. Em 1914, viaja para Genebra com a família, onde faz o ensino básico. Em 1921 regressa a Buenos Aires e funda a revista Proa com outros escritores importantes e publica os seus poemas e ensaios em revistas literárias surrealistas. Trabalhou também como professor universitário e bibliotecário. O seu primeiro livro de poemas, Fervor de Buenos Aires é publicado em 1923, e desde essa época sofre de sucessivas operações às cataratas e perde quase por completo a vista em 1955, a que se refere mais tarde como “um lento crepúsculo que já dura mais de meio século”, mas que o levou a criar novos símbolos literários através da imaginação em obras como A Cifra e Atlas (um esbolo de geografia fantástica). No mesmo ano é nomeado director da Biblioteca Nacional da República Argentina e professor de literatura na Universidade de Buenos Aires. Até 1974, ano em que publica as suas Obras Completas, Borges escreveu (ou ditou) ínumeros poemas, contos e ensaios, que ainda hoje são admirados no mundo inteiro. A sua obra abrange o “caos que governa o mundo e o carácter de irrealidade em toda a literatura”. Os seus livros mais famosos, Ficções de 1944 (onde se insere os conto O Jardim de Caminhos que se Bifurcam e A Biblioteca de Babel) e O Aleph de 1949, são colectâneas de histórias curtas interligadas por temas comuns como sonhos, labirintos, bibliotecas, escritores e livros fictícios, religião e Deus e contribuíram significativamente para a literatura fantástica.

Recebeu diversos prémios, entre os quais o Formentor (prémio internacional de editores) em 1961 e o Cervantes, em 1980. A sua obra foi traduzida em mais de 25 idiomas e passada para o cinema e televisão. Este autor revolucionou a prosa em castelhano e deixou o enorme contributo para a literatura contemporânea. Borges faleceu em Genebra no dia 14 de Junho de 1986.

 

Parte I  – Análise do conto

O “O jardim de caminhos que se bifurcamé um dos contos de Jorge Luis Borges que liberta a sua arte da escrita dos limites anteriormente estabelecidos, na forma como a história nos é apresentada, cheia de alusões e associações dentro dela, como se fosse um labirinto narrativo ao nível do tempo e do espaço.

Yu Tsun é o principal personagem do conto de Borges, que se passa em Inglaterra durante a Primeira Guerra Mundial. Agente do império alemão, Yu Tsun foge do seu inimigo, o capitão Madden. Mas antes de ser capturado, precisa garantir que o exército alemão saiba o nome da cidade onde se encontra o novo parque de artilharia britâncio. E para isso parte para Ashgrove a fim de encontrar Stephen Albert, cuja casa se encontra no centro de um labirinto em forma de jardim. O avô de Yu Tsun, Ts’ui Pen, fora justamente um governador que abandonara a sua profissão para se empenhar na criação de um labirinto e na escrita de um romance. Após 13 anos de empenho é assassinado por um desconhecido. Nesse momento, a sua família não encontra o labirinto, e encontra o seu romance que parece caótico, o que sugere que a sua empreitada fora um fracasso. Quem desvenderá a Yu Tsun o mistério do seu avô é Stephen Albert, que conquista a sua admiração, mas mesmo assim acaba assassinado por ele, pois o seu nome “Albert” serviria para denunciar ao comandante alemão através dos jornais, o local de abrigo da artilharia britânica.

Stephen Albert decifra a charada graças a um fragmento de carta deixado por Ts´ui Pen antes de morrer: “Deixo aos vários futuros (não a todos) o meu jardim de caminhos que se bifurcam.” (Borges, 1941 , p.104). Ele descobre, então, que esse jardim é, na verdade, o romance que em sua forma não linear de contar histórias esconde um “invisível labirinto de tempo” (Borges, 1941, p.103). Por isso, o labirinto oculta na sua espacialidade própria, múltiplos tempos; não apenas um único tempo uniforme, homogéneo, abstracto, mas “(…) infinitas séries de tempos, uma rede cresecnte e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que se ignoram, abrange todas as possibilidades.( Borges, 1941, p.107-108)

Outro elemento da intriga do conto de Borges, não é a forma como o tempo é problematizado através da história de Yu Tsun, mas como no seu interior coexitem vários tempos. Enquanto divaga, percorrendo as bifurcações que o conduzem a Stephen Albert, Yu Tsun imagina um labirinto de labirintos, “um sinuoso labirinto crescente que abarcasse o passado e o futuro e que envolvesse, de algum modo, os astros. Absorto nessas imagens ilusórias, esqueci meu destino de perseguido. Senti-me, por um tempo indeterminado, conhecedor abstracto do mundo.” (Borges, 1941, p.101). Trata-se do tempo interno do personagem, enquanto por sua vez, existe o tempo externo ao personagem, mensurável, como quando está deitado na sua cama, no quarto do hotel, por volta das 6horas da tarde, ou quando apanha o comboio que parte para Ashgrove às 8 horas e 50 minutos da noite, ou ainda quando se apercebe que foi a a diferença entre os horários das partidas dos comboios que lhe salvou a vida. Mas existe ainda um outro tempo, que é mencionado na própria história, mas só faz sentido no final e que parece se um “metatempo”: o tempo circular, que retoma de onde partiu. Stephen Albert comenta com Yu Tsun como o romance para ser infinito precisava ser necessariamente circular. Assim como Ts’ui Pen, criador do labirinto é assassinado por um desconhecido, seu bisneto, Yu Tsun, reassume a condição do assassino ao executar Stephen Albert, decifrador da charada do labirinto. O círculo reencontra, então, o seu início.

Parte II  – Relacções com outras referências

Segundo os textos disponibilizados pela disciplina de Audiovisuais e Multimédia, e neste contexto, este conto é associado a uma literatura “pré-hipertextual” (Landow), pois vai-se interligando a inúmeras referências, conexões e associações que podem ou não ficar a cargo do leitor, ou melhor: o leitor pode seguir caminhos variados em histórias multiformes. Bolter refere que muitos autores (Borges, Proust, Cortázar, Joyce, etc.) ao tentar romper uma narrativa linear, podem ter inaugurado uma forma hipertextual de pensamento na literatura e formaliza essa tese dizendo que é como se os autores estivessem a adivinhar o aparecimento do computador, para libertá-los do impresso, pois muitas das suas obras poderiam ser transferidas para hipertexto e plenamente reconstruídas naquele. Podemos atender ao poder das artes de antecipar os futuros desenvolvimentos sociais e técnicos, como lembrou McLuhan, e neste caso a literatura como os meios de comunicação têm o papel de definir a linguagem através dos conteúdos que veiculam. Segundo McLuhan o meio institui a mensagem que produz, através dos seus paradigmas, tornando-se responsável pela complexificação da linguagem dos media e da sua própria evolução. Se pensarmos hoje com a era digital, essa linguagem tornou-se mais complexa e através das narrativas interativas, hipertextuais e multilineares, adequou-se cada vez mais à interactividade, criando novas possibilidades de produção e recepção (como questionamento sobre a linearidade da informação, na construção de um significado de livre-associação e possivelmente múltiplo). Ao colocar-se a interação o lado do leitor, ou melhor dizendo, o “encerramento” da proposição a cargo do espectador segundo Manovich, nessa estrutura, o utilizador realiza escolhas dispostas em ramos em narrativas complexas ou “forking path narrative”, que apresenta “multibifurcações” dos possíveis resultados que surgem de pequenas alterações num único evento. Esse sentido podia ser já vislumbrado na obra “O jardim de caminhos que se bifurcam”.

Borges refere-se a um livro infinito, ou um livro-labirinto com infinitas proposições: “Não conjecturei outro processo senão o de um volume cíclico, circular. Um volume cuja última página fosse idêntica à primeira, com possibilidade de continuar indefinidamente.” (Borges, 1941, p.105) Já em “Biblioteca de Babel”, conto metafísico também presente em Ficções, descreve uma realidade em que o mundo é constituído por uma biblioteca infindável, albergando uma infinuidade de livros. O narrador, um dos muitos bibliotecários, supõe que os volumes da biblioteca contêm todas as possibilidades da realidade, contudo muitos dos textos dos livros não fazem sentido, ou estão redigidos numa língua há muito desconhecida, outros apresentam a mera repetição de uma mesma palavra. Procura-se então alguém que decifre a biblioteca, equivalente a um “deus”. A metáfora pode ser desvendada: se ler um texto é tentar decifrá-lo, contudo se considerarmos que o próprio mundo está impregnado de linguagem, a própria realidade pode ser considerada como uma grande biblioteca cheia de textos à espera de quem os decifre.

O primeiro aspecto a considerar fora das referências iniciais, remete-nos a Umberto Eco e à Obra Aberta, que ao referir a poética de uma obra aberta como a peculiar autonomia executiva concedida ao intérprete, o qual não só dispõe da liberdade de interpretar as indicações do compositor conforme a sua sensibilidade pessoal, como deve intervir na forma da composição (Eco, 1971, p.37). Essa abordagem é interessante quando Borges deixa algumas pistas de precisão de participação ao leitor para a compreensão deste conto: logo no início quando Borges parece deixar um abismo entre a introdução e o desenrolar da história ao destacar a ausência de duas páginas; e depois o facto de abrir os restantes parágrafos com as aspas, cria um quebra-cabeças, como se permitisse ao leitor remontar as partes. Sendo assim Borges não só nos deixa pistas para a leitura do conto, como nos mostra o estatuto da sua obra: uma narrativa aberta, uma obra circular onde a história aparce dentro de outra história. Como refere Eco: “uma obra de arte (…) é passível de mil interpretações diferentes, sem que isso reduza a sua singularidade.”

Podemos através do conto de Borges, apontar ainda: Italo Calvino (1923-1985), no capítulo “Multiplicidade” do seu livro Seis Propostas para o Próximo Milénio, o autor destaca como característica da literatura contemporânea, a capacidade de estabelecer conexões entre os acontecimentos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo. E nessa caracterização da escrita como fenómeno de multiplicidade, aponta autores como Proust e George Perce (La Vie mode d’emploi ), Borges e Carlo Emilio Gadda (1998: 121): Gadda durante toda a sua vida buscou representar o mundo como um rolo, uma embrulhada, um aranzel, sem jamais atenuar-lhe a complexidade inextricável – ou melhor dizendo, a preença simultanea dos elementos mais heterogeneos que concorrem para a determinação de cada evento”. Mais tarde, refere o ensaio La disarmonia prestabilita do crítico Gian Carlo Roscioni, segundo o qual: “esse conhecimento das coisas enquanto ´relações infinitas, passadas e futuras, reais e possíveis, que para elas convergem`, exige que tudo seja exactamente denominado, descrito e localizado no espaço e no tempo.” (1998: 123).

Sendo uma obra que desenvolve várias noções acerca do tempo, O jardim de caminhos que se bifurcam, Calvino aponta que Borges mostra uma ideia de tempo determinado pela vontade, no qual o futuro se apresenta tão irrevogável como o passado (1998:134).

A noção de tempo múltiplo que pode acontecer simultaneamente, tornada explícida no excerto: “Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de caminhos que se bifurcam” (Borges, 1970, p.104), pode apontar a materialização do conceito da Mecânica Quâtica, de Heisenberg, von Neumann, Einstein, Böhr, Shrödinger e Hilbert, através deste conto de Borges.

Parte III – Borges e Pós-modernidade

A desconstrução do tempo linear e o questionamento das verdades históricas são características que já se viam presentes na Modernidade, e que ganharam vigor na Pós-Modernidade.

Borges inicia o conto referindo-se ao adiamento da ofensiva britânica na Primeira Guerra Mundial, relatado na “História da Guerra Europeia”, de Linddell Hart. Dando datas, números e nomes, o ecsritor dá um carácter de verossemelhança à sua narrativa. Entretanto o nome de Tsun, segundo a narrativa não foi citado na História da Guerra Europeia, embora significasse a salavação de milhares de alemães e possivelmente modificar os rumos da Guerra. Este conto descentra não só a história como também subverte os centros de hegemonia. Coloca o destino de uma nação poderosa cmo a Alemanha, nas mão de um estrangeiro, que se refere a essa nação como “bárbara”.

Se Borges fragmenta e desconcentra as “verdades” que têm como universo referencial a palavra, ele também desestabiliza um dos pilares da narrativa tradicional: a questão da autoria – antecipando de novo questões desenvolvidas e problematizadas na Pós-Modernidade. Não é raro observarmos autorias inventadas, invertidas ou trocadas nos seus contos, como é exemplo o “Pierre Menard: autor de Quixote”.

 

Bibliografia

Borges, Jorge Luis (1970) Ficções,

Calvino, Italo (1998) Seis Propostas para o próximo milénio. Lições americanas, Lisboa: Teorema.

Eco, Umberto (1971) Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas, São Paulo: Perspectiva.

 

” O tempo não existe. É apenas uma convenção.”